sábado, 29 de outubro de 2011

Clarice Lispector... A Hora da Estrela (trecho)

...Mas voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje é hoje. Não estão me entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de velhos. E ouço passos cadenciados na rua. Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca. Essa idéia de borboleta branca vem de que, se a moça vier a casar, casar-se-á magra e leve, e, como uma virgem, de branco. Ou não se casará? O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigada a procurar uma verdade que me ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou uma desesperada e estou cansada, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparada estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui...

Lispector, Clarice, 1925-1977. A Hora da Estrela. 7a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. pp. 27-28.

2 comentários:

Fabi Cris (Denise Criss) disse...

Da Macabéa que existe em todas nós... rsrs

Lindo...

Beijo a todas(os) que têm alma e coração de "mulher"!!!

;D

Sábado de sol a todosss...

Nandha Oliveira disse...

Amei!